domingo, 27 de novembro de 2011

UMA CRÔNICA

SOB OS CAJUEIROS

Do escritório empoeirado, nos fundos da casa, podia ouvir os gritinhos e risos das meninas brincando no quarto. Tirou os óculos e observou por um instante o quintal lá fora, pela janela escancarada para o sol da manhã. A vida podia ser tão fácil, sim... Tudo simples e espontâneo como o sorriso de uma criança. Tudo forte e sincero como o sol de uma manhã de dezembro.
O perfume dos cajus entrou com um vento ligeiro e adocicado, abalando as narinas e os papeis sobre a mesa. Olhou a desordem dos livros e cadernos e quis morrer. Lá fora, as árvores agitavam-se com suas folhagens muito levemente, como se conversassem entre si:

- Você viu que nasceram mais três pardais?
- Você percebeu o orvalho dessa noite, como veio mais pesado?

- Você notou que ele nunca mais deitou-se na rede?

De fato, a rede, armada entre os cajueiros, jazia inerte, abandonada, vez ou outra agitada por um vento mais forte. Quantas tardes de sossego, quantas leituras delirantes, quantas quimeras sussurrada em imagens confusas e perdidas para sempre?
Um dos rostinhos surgiu à porta – a declaração de fome.

- Já já é hora do almoço, tenha paciência.
- Mas eu quero torrada com goiabada – foi a sentença.

Foram à cozinha. Uma frase enquanto passava a geléia com a fria faca: a chuva do caju não lava minha alma.
- Mais uma torrada, pai.

- Não lava, não lava...
De novo no escritório, tentou folhear o livro de Trevisan, sem ânimo. Pensou em ler os e-mails mas também não se empolgou. Às onze chegou a velha tia, trazendo as marmitas. De volta à cozinha, enquanto as meninas faziam festa em volta dos pratos, ela tentava dizer algo útil:

- Você precisa sair mais, meu filho.
- ...

- E seus amigos, onde estão?
- ...

- Você precisa é arranjar outra mulher, esquecer de uma vez o passado...

O passado. A chuva do caju não leva meu passado. A chuva do caju não lava minha alma.

E comiam o feijão, enquanto lá fora a rede sob os cajueiros sonhava com beijos de outrora.

terça-feira, 15 de novembro de 2011

O HUMOR NA IMPRENSA NATALENSE: O JORNAL "O PARAFUSO"(1916-1917)

Outro dia, fui ao Instituto Histórico e Geográfico do Rio Grande do Norte em busca de uma revista em que supostamente o poeta Jorge Fernandes teria escrito alguns textos de humor. Não achei a dita cuja (Revista Araruna), porém encontrei, meio por acaso, mas graças ao guia de Manoel Rodrigues Melo e à solicitude de Lúcia, uma preciosidade: o jornal O Parafuso, um periódico humorístico semanal que circulou em Natal de 1916 a 1917.
Já na apresentação de si a verve satírica do jornal se anuncia: tendo como diretor “um jovem” e como colaboradores “quem tiver dinheiro e coragem”,  O Parafuso apresentava seções em que se destacava o riso de zombaria, na classificação de Vladimir Propp, isto é, o cômico alcançado a partir do rebaixamento do outro.
Fico imaginando o sucesso de público do jornalzinho. Mesmo sendo uma cidade ainda pacata, vivenciando as primeiras transformações geográficas e sociais que a transformariam numa Nova Natal[1], pode-se dizer que a capital potiguar já apresentava certa tradição de imprensa jornalística, com a edição e circulação de impressos como a revista mensal A Tribuna (1903-1904), dirigida por Pinto de Abreu, ou o jornal O Potyguar (1904-1908), de Gothardo Neto (cf. FERNANDES, 1998). Mas nenhum outro destacou-se como periódico de humor, editado semanalmente e alcançando o número de, pelo menos, 55 edições.
Certamente, O Parafuso era um dos principais hábitos de leitura e divertimento da monótona Natal de então: Dr. Seboso e Dr. Belzebuth se responsabilizavam por seções intituladas Dizem..., Damno-me... e De parafuso em punho..., colunas de fofocas e comentários maldosos a respeito de pessoas e episódios da vida local; Um cego aparecia como responsável pela seção Queria ver..., espécie de coluna de pequenos protestos e reivindicações; e outras alcunhas, como Zé Binga, Língua de Mel, Zé Mulambo, K Tizpero entre outros manifestam uma autoria afiada pelo humor. Vejamos alguns exemplos:
Na seção Dizem... encontramos pérolas como...
- que na rua Borborena appareceu um lobishome ás 3 horas da madrugada;
- que o dito já foi descoberto por um sapateiro que tirou-lhe o couro para fazer um par de sapatos para dar a um rapaz que tem um chamego no beco...  (16/04/1916).
- que na rua Amaro Barretto tem uma mulher que se não tomar um chá de talo de bananeira enlouquece (30/01/1916).
Outra seção, que também faz valer o rebaixamento do outro, é a Damno-me..., em que é possível observar a ridicularização de pessoas da cidade, como em...
- com Nezinho por querer ser poeta; vae estudar, jumento...
- com a falta de juíso que tem certa viúva da cidade-alta... (06/02/1916).
Esses poucos exemplos revelam o aspecto disciplinador que estaria associado a esse riso de zombaria. Já que essa manifestação de comicidade estaria apoiada na ridicularização de “defeitos”, fossem verdadeiros ou supostos (PROPP, 1992), O Parafuso, assim, parece pretender regular atitudes e comportamentos, censurando e combatendo tudo o que não estivesse de acordo com os códigos de civilidade da modernidade que então chegava à província[2].
A seção De parafuso em punho... é outra coluna d’O Parafuso que manifesta esse aspecto. Seguindo o título, surgem vários comentários sobre pessoas e/ou situações contra os quais o periódico se coloca. Dentre eles, destaque para trechos como...
- contra uma moça que foi a um enterro e trouxe um gerimú do cemitério (05/03/1916).
- contra a viúva da travessa P. Barros, que não tem verniz;
-contra a mesma que não respeita nem a irmã. Cuidado não seja tão alegre, sinhá cara de saguim (10/12/1916).

O mais curioso – e isso sim me fez rir a valer – é o comentário que aparece na seção Dizem...: “que em Natal há línguas ferinas demais”...
Imagino se os meninos d’O Parafuso visitassem o Beco da Lama nos dias de hoje...
Referências Bibliográficas
ARRAIS, Raimundo. Estudo introdutório. In: ARRAIS, Raimundo. Crônicas de origem: a cidade de Natal nas crônicas cascudianas dos anos 20. 2ª. Ed. Natal: EDUFRN, 2011.
AZEVEDO, Sânzio. A Padaria Espiritual. Fortaleza: Academia Cearense de Letras, 1976.
FERNANDES, Luís. A imprensa periódica no Rio Grande do Norte: de 1832 a 1908. 2ª. Ed. Natal: Fundação José Augusto/Sebo Vermelho, 1998.
PROPP, Vladimir. Comicidade e riso. Vários tradutores. São Paulo: Ática, 1992.
SILVA, Marco Aurélio Ferreira. Uma Fortaleza de risos e molecagem. In: SOUZA, Simone de; NEVES, Frederico de Castro (orgs.) Comportamento. Fortaleza: Edições Demócrito Rocha, 2002.


[1] Cf. Arrais (2011), no seu estudo introdutório sobre a cidade à época das primeiras crônicas de Câmara Cascudo. Segundo Arrais, algumas intervenções urbanas já no começo do século apontavam para a modernização da cidade, como a instalação de bondes em 1908 e a iluminação pública em 1911, mas a grande diferença se fez com o Plano Palumbo, na década de 1920, que reorganizou a malha urbana e criou jardins, praças e passeios na cidade.
[2] Também no Ceará é possível ver o mesmo riso disciplinador. Em seu estudo sobre a imprensa cearense do final do século XIX, Marco Aurélio Ferreira da Silva mostra como alguns pasquins, como O Moleque, procuravam, através do riso, “corrigir, regular e modelar hábitos e costumes” (cf. SILVA, 2002).

domingo, 13 de novembro de 2011

A PRENSA E AS FONTES: DOM QUIXOTE NA OFICINA DE IMPRESSÃO



Este é o título de um dos capítulos que compõem o livro “Inscrever & Apagar”, de Roger Chartier, o renomado historiador do livro e da leitura. O livro trata de questões fundamentais para se pensar o livro como um objeto histórico e cultural e, especificamente nesse capítulo, Chartier toma o caso de Dom Quixote para rever como se organizavam as funções, técnicas e etapas imprescindíveis para a publicação de um livro no século XVII.
Segundo Chartier, a presença de uma oficina de impressão na narrativa de Cervantes (entre os capítulos LXI e LXVI) não é casual: “ela introduz, no próprio livro, o lugar e as operações que tornam sua publicação possível” (fato já identificado por Borges, aliás).
E prossegue o historiador:
Cervantes inicia seu leitor na divisão e multiplicidade das tarefas necessárias para que um texto venha a ser um livro: a composição das páginas pelos compositores (componer), a revisão das primeiras folhas impressas a título de provas (corregir), a retificação, pelos compositores, dos erros identificados nas páginas corrigidas (enmendar) e, finalmente, a impressão dos moldes, ou seja, do conjunto de páginas destinadas a ser impressas de modo idêntico, do mesmo lado de uma folha de impressão, pelos operários encarregados da prensa (tirar). (CHARTIER, 2007, p. 87-88).
A descrição de Cervantes coincide com o que regulavam diversos manuais de impressão e tipografia da época, todos destacando o papel do revisor. Segundo esses manuais apontados por Chartier, cabia ao revisor tanto identificar erros dos compositores, seguindo as provas impressas do texto a partir da leitura em voz alta da cópia original, como também atuar como censor, buscando (e recusando) algo que contrariasse a Inquisição, “a fé, o rei e a coisa pública”. O revisor, assim, era aquele que dava forma final ao livro, sendo preciso tanto compreender a caligrafia original como também perceber as intencionalidades do autor. Isso sem falar nos conhecimentos necessários para exercer seu ofício: gramática, teologia, direito e língua latina, além de alguns rudimentos sobre as técnicas de impressão.
Desse modo, o leitor do século XVII sequer poderia imaginar (como talvez ainda não imagine, no século XXI) que, se o corpo do livro é o resultado do trabalho de editores e impressores, sua alma não é confeccionada apenas pelo autor, mas recebe sua forma também daqueles que trabalham aspectos aparentemente banais, mas essenciais para a leitura de uma obra: pontuação, ortografia, paginação, estilo e textualidade, elementos que passam pelas mãos (criteriosas ou não) dos revisores de ontem e de hoje.
CHARTIER, Roger. Inscrever & Apagar. Tradução de Luzmara Curcino Ferreira. São Paulo: Editora UNESP, 2007.


quarta-feira, 9 de novembro de 2011

MAIS UM CONTINHO ORDINÁRIO

PÂNICO


Ano-Novo, velhas opiniões formadas sobre tudo.
Para tentar escapar da angústia que aos poucos chegava, foi ao supermercado.
Queria crer que seria fácil. Olhava a redor, as pessoas como floresta, eletrodomésticos em vez de bichos, prateleiras e cartazes em vez de colinas e vales, olhava tudo sem nada ver. Queria crer que era fácil e simples. A resposta ali na frente, acenando com sorriso destrambelhado. Eis me aqui, eis-me aqui!!! Muito fácil, sim. Uma questão de concentração, de foco. Energia canalizada e tudo resolvido!
Tornou a erguer a cabeça. A fila caminhava, sem maiores dramas e delongas. O painel luminoso à frente indicava: mais três pessoas e chegava a sua vez.
Enquanto isso, a música do piano elétrico continuava, com os hits americanalhados e contumazes. Crianças, subitamente amigas, correndo ao redor de uma grande árvore de natal, o homem anunciando ao microfone as ofertas de última hora. Mal sabia ele que é sempre a última hora.
Enquanto amigos de academia se organizavam em torno dos sushis no balcão da lanchonete e mulheres donas de família comparavam os preços e embalagens das marcas e caixas de sabão em pó, ela lia pela milésima vez o rótulo na garrafa que tinha em mãos, refúgio para o surto que se anunciava.
Um Merlot. Não importa isso aqui. Não importa a sua taquicardia, os homens do campo continuarão plantando e colhendo nos vinhedos aquelas melhores cepas. O consolo, a vida continuando, o mundo girando além dela, pó que retorna ao pó.
Aliás, onde encontrar pó naquela hora, naquela cidade?
Sem a menor condição de possibilidade. E, pensando bem, nem queria tanto assim, pensou, fungando abstraidamente.
O aviso do painel mandou mais um para o abate. A fila do caixa andou e parou novamente. Segurou mais firme a garrafa com o Merlot – portal de fuga – e respirou fundo, dando intervalos de segundos a cada expiração, conforme aprendeu séculos antes. Sim, está tudo na nossa mente. E pode ser só uma questão de técnica.
Ah, a técnica...
Talento, cadê você?
É a Técnica, que não me dá sossego...
Manda essa vadia embora. Explica quem é que manda.
Não. De repente ela vai mesmo. E o resultado pode ser o mesmo ou pior – ostracismo, falta de atitude...
Atitude, cadê você?
Trancada no quarto enquanto o mundo desaba lá fora. E é uma questão de tempo até derrubarem essa porta.
O que resta?
A esperança. Pandora não te falou?
Por isso as festas são necessárias...
Pois é, as opiniões...
O suor frio, frio na alma.
Para uns, uma questão de guerra santa: uma bomba bem armada, uma ocasião propícia e um segundo para a revelação do Paraíso. Para outros, uma questão de meditação: respire fundo, sinta as falanges do dedinho do pé e descubra. Conheça-se.
Quando sua vez na fila do caixa chegou, a respiração voltou ao ritmo normal. Depois de todo aquele terror, só conseguiu desejar que aquele terroir não fosse também tão terrível...

quarta-feira, 2 de novembro de 2011

EM MINAS, COM BANDEIRA

POEMETO ERÓTICO

TEU CORPO CLARO E PERFEITO,
- TEU CORPO DE MARAVILHA,
QUERO POSSUÍ-LO NO LEITO
ESTREITO DA REDONDILHA...

TEU CORPO É TUDO O QUE CHEIRA...
ROSA... FLOR DE LARANJEIRA...

TEU CORPO, BRANCO E MACIO,
É COMO UM VÉU DE NOIVADO...

TEU CORPO É POMO DOIRADO...

ROSAL QUEIMADO DE ESTIO,
DESFALECIDO EM PERFUME...

TEU CORPO É A BRASA DO LUME...

TEU CORPO É CHAMA E FLAMEJA
COMO À TARDE OS HORIZONTES...

É PURO COMO NAS FONTES
A ÁGUA CLARA QUE SERPEJA,
QUE EM CANTIGAS SE DERRAMA...
VOLÚPIA DE ÁGUA E DA CHAMA...

A TODO O MOMENTO O VEJO...
TEU CORPO... A ÚNICA ILHA
NO OCEANO DO MEU DESEJO...

TEU CORPO É TUDO O QUE BRILHA,
TEU CORPO É TUDO O QUE CHEIRA...
ROSA, FLOR DE LARANJEIRA...

Manoel Bandeira