quarta-feira, 29 de junho de 2011

MAIS UM CONTINHO ORDINÁRIO



VIVA SÃO JOÃO!
Como contar um conto? Como dizer o indizível?
Pois o narrador não sabe como, narrador nenhum saberia. O fato é que Natã decidiu morrer.
Acelerou o carro em direção à Ponte Newton Navarro. Dos 60, rapidamente alcançou os 120 quilômetros por hora. Ao lado, o mar muito verde a se chocar contra o muito azul do céu, num sem fim de beleza. Lá embaixo, sob a queda do horror que se anunciava, segundos de abismo. Ponte para a morte.
Para Natã, a morte era mais do que certa, era presença inconteste. Mas ele só não contava com uma coisa, o carro que ia passando mais veloz do que o dele, ultrapassando-o. Ao passar por ele, viu de relance, estampado no vidro do banco de trás, o rosto de uma menininha.
Era ela.
Ela.
Ela, de mais de quarenta anos atrás, ela, das quebradas do tempo e da cidade de interior em que os dois viviam, na infância.
A coleguinha de rua. Mais nova que ele uns três anos. Uma coleguinha apenas.
Mas em uma noite de São João...
Na noite de São João, não há prata na fogueira que resolva a angústia do viver. Não há cerveja gelada ou palavra de crente que dissolva essa verdade, não há ponte que faça escapar disso.
24 de junho. Dia em que Assu libertou seus escravos e a baronesa serviu grande banquete para os seus, num ritual de despedida. Dia em que os dois, crianças, se encontraram, logo depois da apresentação do Auto.
Ao redor, o mundo: bandeirinhas e arrasta-pé, churrasco de coração de galinha e milho assado, gatos sonsos e descuidistas, olhares e fofocas, risos e brigas. E ele, enroscado a ela pelo descuido da sorte, não entendia outra linguagem que a da brutalidade – assim, brincar era beliscar, bater, ameaçar torcer o bracinho dela, puxar-lhe os cabelos. Ela resistia. Mas, com efeito, não saía de perto dele. Parecia gostar.
Com Assu, com afeto, assim dizia a placa na cidade.
Mas há de sempre chegar um instante em que, de tão doce, a coisa toda desonera. Ou de tanto fel, como as pancadas dele. Até que ela cansou e sumiu.
Não a via mais pela rua. Depois soube, casualmente: a família se mudou para outra cidade.
E como foi que Natã, durante todo aquele tempo, havia esquecido aquela noite, aquela menina? Lembrou-se, diante de tanto esquecimento, o rápido momento daquela noite de São João em que, deixando de lado por um instante sua manha de mau, permitiu-lhe um carinho, levando-a montada nos quartos, como se fosse uma mula.
Desacelerou, subitamente, quase fazendo cantar os pneus. Em algum lugar, uma guitarra gritou. Em algum lugar, um grito gemeu.
E não é que era uma mula mesmo?



terça-feira, 28 de junho de 2011

DO SILÊNCIO


"De manhã, o sol nasce. Eu o saúdo.
Darei tudo de mim para viver o dia de hoje."

(Do poema de Senri Uyeno. In: KATAGIRI, Dainin. Retornando ao silêncio. A prática zem na vida diária. Tradução de Rubens Rusche. São Paulo: Pensamento, 1991)

segunda-feira, 20 de junho de 2011

UM POEMA PORTUGUÊS



Deslumbramentos

Milady, é perigoso contemplá-la
Quando passa aromática e normal,
Com seu tipo tão nobre e tão de sala,
Com seus gestos de neve e de metal.

Sem que nisso a desgoste ou desenfade,
Quantas vezes, senguindo-lhes as passadas,
Eu vejo-a, com real solenidade,
Ir impondo toilettes complicadas!…

Em si tudo me atrai como um tesoiro:
O seu ar pensativo e senhoril,
A sua voz que tem um timbre de oiro
E o seu nevado e lúcido perfil!

Ah! Como me estonteia e me fascina…
E é, na graça distinta do seu porte,
Como a Moda supérflua e feminina,
E tão alta e serena como a Morte!…

Eu ontem encontrei-a, quando vinha,
Britânica, e fazendo-me assombrar;
Grande dama fatal, sempre sozinha,
E com firmeza e música no andar!

O seu olhar possui, num jogo ardente,
Um arcanjo e um demónio a iluminá-lo;
Como um florete, fere agudamente,
E afaga como o pêlo dum regalo!

Pois bem. Conserve o gelo por esposo,
E mostre, se eu beijar-lhe as brancas mãos,
O modo diplomático e orgulhoso
Que Ana de Áustria mostrava aos cortesãos.

E enfim prossiga altiva como a Fama,
Sem sorrisos, dramática, cortante;
Que eu procuro fundir na minha chama
Seu ermo coração, como a um brilhante.

Mas cuidado, milady, não se afoite,
Que hão-de acabar os bárbaros reais;
E os povos humilhados, pela noite,
Para a vingança aguçam os punhais.

E um dia, ó flor do Luxo, nas estradas,
Sob o cetim do Azul e as andorinhas,
Eu hei-de ver errar, alucinadas,
E arrastando farrapos - as rainhas!

Cesário Verde

domingo, 19 de junho de 2011

MAIS UM CONTINHO ORDINÁRIO

O LIVRO
Alice N. cumpria o ritual religiosamente: depois das obrigações, lá pelas quatro da tarde, escapava com passo ligeiro rumo à biblioteca de Caicó. Lá, entretida entre papéis, poeira e solidão, ficava até seis e quarenta e três. Na noite que se iniciava, voltava para a casa da patroa como quem vai flanando, sem ver nada de gentes e gestos, ultrapassando, veloz, bicicletas, bares e bichos. Era Alice N., na volta da biblioteca, ser de outro tempo que não aquele agora.
Alice N. era mais uma entre tantos. Dezesseis anos, dentes quebrados, alma desgarrada de família e de futuro, cedo se viu na incumbência de ter que sobreviver – lavar roupa, cozinhar, cuidar de menino dos outros... Até os quatorze anos viveu com uma avó que lhe ensinou a ler, mas quando a senhora morreu – uma queda no terreiro entre as galinhas perplexas – Alice passou para a página mais amarga de sua vida – fome, maltrato, desesperança.
Como tudo na vida, o tempo seguiu lentamente e foi tudo se conformando. Tudo ia seguindo lenta e conformemente, tal como a folhagem das árvores sob o ar parado dos domingos de verão do Seridó.
Até que, entre as lidas do dia a dia, descuidada e sem maiores expectativas, num sábado de feira, Alice N. teve uma surpresa, mais uma virada de página no livro de sua vida. Outro capítulo que se iniciava sem que sua leitura vadia e inocente pudesse controlar.
Era um velho calvo e de barbas longas e brancas. Seu ar não tinha nada de solene: com uma voz pausada e tonitroante, de modo loquaz e atrevido, recitava os versos de um cordel seu. Que céu, para Alice N.! Sair de si! Eram tantas as histórias numa única história! Era tanta promessa em versos medidos, tantos mistérios em palavras rimadas!
Ao final do recital, quando as pessoas ao redor se dispersaram, Alice N., ainda emocionada, foi se chegando lentamente do contador de histórias. Ele juntava os folhetos, guardava os troços numa maleta velha, de outros séculos.
Ai, Alice... Foi ali que a paixão tomou conta de seu ser. Olhando aquele outro estranho ser, portal para outra existência, Alice N. vislumbrou a ponte da palavra escrita e desejou, ardentemente, jogar-se naquele abismo do que não se conta e não se diz. A alguns passos, observou o velho por alguns instantes e, criando coragem, aproximou-se.
Ia dizer, mas a linguagem lhe faltou. Apenas observou, sem que o homem demonstrasse nenhuma atenção a ela. Ele juntou suas coisas, colocou um chapéu na cabeça e seguiu, rua abaixo. Sem ter o que fazer, irremediavelmente presa a ele pelas manhas de um narrador distante e inconsequente, seguiu o velho, esperando pela oportunidade propícia – que, ela não sabia, nunca vem.
O homem, com sua barba branca e suas histórias latentes, seguiu até o prédio nomeado com alguma pompa – Biblioteca de Caicó. Um pequeno prédio, de esquina, sob a sombra gentil de uma quixabeira. Alice N. parou em frente à porta da entrada, hesitante. Mas o desejo de falar com o homem era tão grande que, respirando fundo, encheu-se de coragem e entrou.
Viu quando ele cumprimentou uma mulher atrás de um balcão, cheio de salamaleques. Viu quando ele pegou um jornal e sentou-se à mesa do grande salão. Viu quando ele se levantou e foi passear entre as estantes. Uma, duas, três voltas por entre os livros. Havia livros de todas as formas: livros pequenos, livros grandes, livros grossos, livros finos, livros novos, livros antigos... E o velho, como num passeio, óculos na ponta do nariz impertinente, verificava, verificava, verificava...
E Alice N. só admirava... Que encanto a lhe atrair? Que segredo a ser revelado?
Quando pensava ser possível chegar-se, finalmente, junto a ele, viu que o poeta escolhia um livro qualquer de uma prateleira qualquer, com muito espanto e alegria. Achou, assim, que seria inconveniente falar-lhe. Esperou para ver se ele colocava o livro novamente na estante, mas, ao contrário, viu que ele levava o livro novamente para a mesa. Então se sentou e pôs-se a folheá-lo com vivo interesse e peculiar curiosidade.
Ah, mistério! Ah, insondável! Que frase te cativa? Que palavra te contém?
Alice N. viu, então, o velho de longas barbas brancas levantar-se, deixar o livro sobre a mesa e retirar-se muito rapidamente da Biblioteca de Caicó. Foi-se em boa hora. Alice N. não teve tempo de esboçar nenhuma reação, tão entretida estava vendo o homem ler. Partiu, simplesmente, e Alice não pode lhe falar.
Entre espanto e esperança, foi timidamente até a mesa. O livro jazia ali, único sobre a mesa, esquecido em sua leitura errante para nunca mais. Alice olhou ao redor, timidamente, até tocar no livro, puxá-lo para junto de si e observar sua capa. Apenas algumas letras, em vermelho, diziam:
O livro de contos de Alice N.
Um livro inteiro de páginas em branco. Um livro que estava para ser escrito.

sexta-feira, 17 de junho de 2011

DO BLOOMSDAY EM NATAL


JOYCIRCUNVOLUÇÕES NATALENSES

João da Mata Costa

O Bloomsday faz bodas de prata com upgrade e muitas novidades. Um
projeto do professor Chico Ivan desaguou no Potengi – Liffey. Natal teve
suas vanguardas com a palestra Natal daqui a cinquenta anos do Manoel
Dantas e o poema - processo. Nostros em qquer lugarmediterranicos. Natal
também tem suas graças …. um certo charme na sua decadência. Uma cidade
que sofre com as atuais administrações e com as oligarquias. Nada era
perdido para Joyce e são dos restos que fazemos a sopa de osso ou de
pedra ( mon ami ). Outros disseram de uma terra desolada. O que Joyce
escreveu sobre a Irlanda eu poderia transportar para Natal. Mas, eu não
sou Leopold Bloom e mesmo assim comemoro o bloomsday. A Irlanda também é
bebum e ruidosa. “Terra de uma raça esquecida por Deus e oprimida pelos
padres … a raça mais atrasada da Europa”. Eu também poderia dizer isso
de Natal, mas eu não sou Joyce. Prefiro andar por suas vielas e bares.
Freqüentar o bar de Zé Reeira e tomar uma cerveja com Zizinho, Ronnie
Von e Cellina. Adentrar na garçonieri de Abimael e conversar sobre o
próximo lançamento. Lembrar das cervejas tomadas em Maria com todos os
boêmios feitos porcos por Circe.
O Ulisses de James Joyce – o “blue book das eclésias”- é um livro sobre
o amor. Leopold Bloom, o protagonista do romance que revolucionou a
literatura universal, passa o dia perambulando por uma Irlanda (terra da
ira) decadente, e tem consciência da traição de Molly Bloom. São
dezesseis horas e o relógio de cuco toca … e nessa hora vesperal Molly
recebe o amante em casa. “Eles são loucos para entrar de onde eles
saíram”, diz Molly. Oito de setembro é o aniversário de sua amada e 16
de junho foi quando Joyce se apaixonou perdidamente por ela. As datas
são muito importantes para o aquariano Joyce nascido no dia 02 de
fevereiro. O tema do ciúme também está presente na sua única peça
“Exílio” e no último conto de Dublinenses “The Dead” . Um dos maiores
contos do século XX foi levado às telas por John Huston com o título “Os
Vivos e os Mortos” (EUA 1987). No Ulisses, Joyce fala muito através dos
sons. O leitor sente prazer e dor ao ouvir o som da trombeta, o suspiros
das folhas, o ruído do mar e o som da água escoando no ralo da pia em
espiral. A polissemia das palavras valise, da palavra montagem, da
palavra ideograma encadeando novos sentidos. Joyce é um alquimista da
palavra e a linguagem é o personagem principal desse imenso cipoal cheio
de ruídos e labirintos que é esse enciclopédico romance Ulisses.
“ Deus é um barulho na rua”. “Todos esses ruídos convergiram numa única
sensação vital para mim: imaginava conduzir meu cálice incólume, através
de uma multidão de inimigos”. Durante o dia 16 de junho Bloom chega a um
estado mental que é mais abnegação do que ciúme. Joyce evoluiu no
tratamento desse tema desde suas primeiras criações literárias. É com
uma grande pulsão verbal com que Joyce fala do amor numa feerie carnal
pulsipulso. “Ele beijou os fornudos ricudos amareludos cheirudos melões
do seu rabo, em cada fornido melonoso hemisfério, na sua riquêga
amarelêga rêga, com obscura prolongada provocante melonicheirosa
osculação”. Ao fim do episódio de Nausícaa (cap.13), o “relógio de cuco”
informa a Bloom que ele é agora um corno. Cuco, cuco, cuco… cukoo-cloc;
relógio de cuco e cuckold- corno. No final, Ulisses “retorna” para casa
(Ítaca) e encontra Penélope (cama). A mulhervaginabismo onde o homem se
perde e jamais retorna. O romance encerra com um pungente monólogo de
Molly Bloom. “yes, I said yes I will Yes oui jái dit oui je veux bien.
SIM EU QUERO SIMS.
Vagueando por Natal tenho o meu Johnsday. No restaurante da universidade
converso sobre Flaubert. Um grande escritor admirado por Joyce. Alguém
que buscou a impessoalidade na sua literatura. Em Joyce, impossível
separar a vida do opus. No cemitério do Alecrim entro no reino de Hades
e rezo um cantochão na igreja do Galo. Lanço as cartas do Tarot e tiro a
carta 15. Blake e “A Canção dos Loureiros” do Édouard Dujardin. Sigo o
fluxo de consciência. Caminho por suas ruas e vielas esburacadas très
bian aussi. Lembro da escola de pé no chão nas Rocas e da fábrica de
pregos das Quintas onde fui menino. Depois olhar o Potengi e namorar na
pedra do Rosário. Em Ponta Negra bato uma brahma. Na Padre Pinto, saindo
do bar do coelho, olho o rio que parece o Liffey. Molly Bllom nessa hora
deve estar me traindo. Capitu also e Otelo coitado. São quatro horas e
nessa hora alguém está sendo chifrado. Tudo que é proibido é bom. Clô
telefona para falar de Shakespeare e de Hamlet, a Monalisa da literatura
: Words, words, words….cama camisola ave Maria cheia de graxa. Lê em voz
muito alta o Finnegans Wake. Literatura de notívagos e bruxos. Fim again
Fim . Nunquam satis discitur. O eterno ciclo viquiano do movimento
circular divino. Só com compaixão, humor e lirismo vamos conseguir
sangrar os mares desse Potengi desmamado e poluído numa das esquinas do
mundo onde meu amigo “foi feliz e se deu bem”. Parafraseando Stephen
Dedalus no Retrato do Artista quando Jovem, de James Joyce, referindo-se
á Irlanda, eu diria de Natal (eu que já sou meã ): “ Natal é uma porca
velha que devora suas crias”.

quarta-feira, 15 de junho de 2011

"Noite dos ventos, noite dos mortos"

Na lua cheia
e neste eclipse lunar
tenho de morrer
para novo sol raiar.

quem me disse esta verdade
foi a carta treze do tarô
um brinde, pois, ao ceifador
e que outra colheita
não tarde.

terça-feira, 14 de junho de 2011

POEMETOS EM QUE ME METO 2

POEMA PARA EX(ILAR)

Come tua pipoca
E segue teu caminho
Nossos olhares
Não mais se cruzarão,
Nem nossas seivas.
Segue teu caminho
Que eu sigo o meu.
Quem se fudeu?
Quem foi o mais fodido?
Eu de quatro, no teu falo?
Ou tu montado AQUI
No meu lombo?
Segue teu caminho,
Que agora eu sigo o meu
Mas não esqueço nosso beijo,
Aquele,
O primeiro,
Aquilo que um dia foi,
Num dia bem azul,
O nosso desejo.

quinta-feira, 9 de junho de 2011

MAIS UM CONTINHO ORDINÁRIO

O VESTIDO
Era rosa. Com babados pretos. Ele trouxe no domingo, triscado, após os festejos de fim de feira.
Na segunda-feira, o vestido no mesmo canto onde largado, penteadeira do quarto, testemunha ocular da noite passada. Depois do presente devidamente recebido, ela prometeu – com restos de beijos e afagos só dos dois – vestiria um mês depois, quando ele voltasse do mar.
Porque a distância aproxima. E a saudade nos salva do tédio.
Naquele dia o vestido ficou na penteadeira enquanto ela lavou a louça, banhou os meninos e se encostou no balcão da sala, vendo a novela Três Marias e sentindo um aperto no peito.
O peito apertado, aperto no coração...
De onde vem a dor? Doer é dívida ou dádiva?
Por que a gente sente angústia? Pelo mistério que não se desvenda? Pela certeza da morte? O fim que se anuncia, mal se vislumbra o começo?
Uma voz solene e sonora ressoa na solidão – outra vez:
 – Não faça melodrama!
OK, sem melodramas. Até porque a vida é mesmo é trágica.
No intervalo da novela foi que dona Matilda mais o filho vieram, gatos ressabiados a dar a triste notícia para ela:
 – Vamos ali com a gente...
A notícia que não se espera, embora sempre latente. Até ela entender o que de fato acontecia, teve que entrar no salão branco e gelado para reconhecer o corpo. Tocou nele, olhar cego de tão marejado. Sentiu, por trás do pescoço dele, a funda fenda do golpe do guindaste que tirara sua vida, no navio.
 – Ai, que vida! gemia, aos prantos.
Só aí foi que percebeu... Atarantada pela pressa ao sair de casa rumo ao necrotério, nem pensara no que vestir. E vestia o vestido, presente do finado marido.

"SE NÃO SEBO, ME ARRANHO" - Por João da Mata Costa

[1.jpg]

Gostaria de aqui prestar uma homenagem a todos os sebistas do país, e em particular aos da minha terrinha. Sim, porque Natal já não é a mesma de quando não existiam o Cata-Livros, o Sebo Vermelho, o da Esquina e outros que já entraram na minha geografia sentimental. Uma cidade sem sebos é uma cidade sem vida. É nos sebos e pelos sebos que podemos avaliar o nível cultural de uma cidade – ele é uma medida dos que lêem, ouvem e escrevem. Quando vou ao centro da cidade, esqueço as outras “vitrines” e as “meninas” para me perder e me encontrar nos sebos. Apesar de ainda não termos uma grande tradição cultural sebista, é possível encontrar com certa persistência e abnegação algumas raridades fonográficas ou literárias. Eu as encontrei algumas vezes e tive grandes alegrias. Procuro outras, talvez nunca depare com elas, mas se as encontrar, certamente será num sebo. E nesse dia erguerei mais um brinde e te louvarei mais uma vez, sebo.
Mas o sebo não é só isso! É aquele templo sagrado onde se reúnem as fadas, os elfos e os gnomos que enfeitiçam e dão colorido à vida. É lá também que travamos contato com outras personagens vivas ou mortas. Algumas trilhas são deixadas e novos caminhos da alma são revelados.
No sebo não só recuperamos o tempo perdido como o livro perdido, mesmo quando este livro foi emprestado a alguém que já não pode devolvê-lo a nós pessoalmente. Emprestei certa vez um livro a pessoa muito querida e também freqüentadora assídua dos sebos. Repentinamente o meu companheiro de credo e “cruzes” falece, e a família vende todos os seus livros. Não fui procurar o livro em sua casa e nem participei da compra de sua valiosa biblioteca. Resignadamente achei que não encontraria mais o tal livro. Outro dia, numa das muitas peregrinações aos sebos, eis que me encontro novamente com meu precioso livrinho...
Evoé Sebo!
(In: SILVA, Abimael. Guia de sebos de Natal e textos afins. Natal: Sebo Vermelho, 1998).

terça-feira, 7 de junho de 2011

Leituras Potiguares: "As Pelejas de Ojuara"



Roland Barthes afirma que, caso algum excesso de “socialismo ou de barbárie” excluísse todas as disciplinas do ensino, exceto uma, a literatura é que deveria ser salva, já que todas as ciências estariam presentes no monumento literário. Com efeito, a "literatura faz girar os saberes" e com o romance potiguar “As pelejas de Ojuara” é possível aprender muito sobre o que Bakhtin chama "alegre relatividade do mundo".
"As pelejas de Ojuara" é um romance escrito por Nei Leandro de Castro, autor norte-rio-grandense do sertão do Seridó, e cuja primeira edição remonta ao ano de 1986. Mas não é um simples romance de aventuras que bebe nas fontes da literatura popular nordestina: é uma leitura excitante. Em poucas palavras, trata-se da narrativa das aventuras de Ojuara pelos territórios do Rio Grande do Norte, em data incerta. Seu protagonista, um pacato cidadão – Araújo – um dia “morre” para fazer nascer Ojuara, o aventureiro que sai a percorrer o mapa do elefante, que conversa com os filhos do Demo, que voa com o Pavão Misterioso, que vence a ardilosa Mãe de Pantanha, que doma Boi Mandingueiro, que improvisa repentes, que aprecia uma boa “talagada”, um bom “fuzuê” e uma boa “chambrecagem”.
Independentemente da notoriedade que adquiriu com a filmagem de Moacyr Góes, com produção de Lucy e Luis Carlos Barreto ("O homem que desafiou o diabo"), é leitura obrigatória para quem gosta de aprender algo a mais sobre esse mundão de Deus (e do Diabo), e, de preferência, com o prazer do riso.

segunda-feira, 6 de junho de 2011

Poesia em homenagem à antiga Itacoatiara: "Elegia", de Zila Mamede


Não retornei aos caminhos
que me trouxeram do mar.
Sinto-me brancos desertos
onde as dunas me abrasando
tarjam meus olhos de sal
dum pranto nunca chorado,
dum terror que nunca vi.

Vibro hoje areias ardentes
sonhando praias perdidas
com levianos marujos
brincando de se afogar,
com rochedos e enseadas
sentindo afagos do mar.

Tudo perdi no retorno,
tudo ficou lá no mar:
arrancaram-me das ondas
onde nasci a vagar,
desmancharam meus caminhos
 - os inventados no mar:
depois, secaram meus braços
para eu não mais velejar.

Meus pensamentos de espumas,
meus peixes e meu luar,
de tudo fui despojada
(até das fúrias do mar),
porque já não sou areias,
areias soltas de mar.
Transformaram-me em desertos,
ouço meus dedos gritando
vejo-me rouca de sede
das leves águas do mar.

Nem descubro mais caminhos,
já nem sei também remar:
morreram meus marinheiros,
minha alma, deixei no mar.

Pudessem meus olhos vagos
ser ostras, rochas, luar
ficariam como algas
morando sempre no mar.

Que amargura em ser desertos!
Meu rosto a queimar, queimar,
meus olhos se desmanchando
- roubados foram do mar.
No infinito me consumo:
acaba-se o pensamento
no navegante que fui
sinto a vida se calar.

Meus antigos horizontes,
navios meus destroçados,
meus mares de navegar,
levai-me desses desertos,
deitai-me nas ondas mansas,
plantai meu corpo no mar.

Lá, viverei como as brisas.
Lá, serei pura como o ar.
Nunca serei nessas terras,
que só existo no mar."

sábado, 4 de junho de 2011

tipos potiguares

QUEM DIRIA? FALVES SILVA CONHECEU CAZUZA
Falves Silva
Conheci Cazuza no final da década de 60, era um tipo de estatura mediana, magro, meio sarará, olhos apertados, como se a claridade do sol estivesse incomodando o tempo todo. Era paraibano de Guarabira, se não me falha a memória. Conhecia meu pai, que era jogador profissional e andava de feira em feira no interior da Paraíba fazendo a vida na mesa do jogo, bancando o “capira”, “relansinha”, “bozó”, etc. O irmão da Cazuza, que não lembro seu nome agora, sempre dava notícias de meu pai.
– Francisquim, diz a Rita (minha mãe) que vi Bastião, lá em Sapé, ele mandou lembranças. Dizia ele. Eu tinha então 13 ou 14 anos e trabalhava na República distribuindo jornais para os assinantes, andava Natal todinha que terminava praticamente no 16RI, pra lá do 16 tinha umas poucas casinhas, mas ninguém assinava jornais naquela área.
Pois bem, o sebo da Cazuza ficava aqui na esquina do Beco da Lama com a Ulisses Caldas, botava uma mesa comprida na calçada, enchia de livros e revistas, ficava à espera do freguês, lá ia eu, saía d’A República, subia na São Tomé, passava pelo mercado (onde é o Banco do Brasil hoje), tomava um caldo de cana com pão doce, feita a barriga me dirigia ao sebo do Cazuza.
Sempre fui aficcionado em revista de nus, e, naquele tempo, onde um menino de 14 anos poderia encontrar o tal artigo, senão no Sebo de Cazuza? Chegando lá meio desconfiado, com jeito de quem não quer, e querendo, olhava por cima, vasculhava (sabia que as revistas de nudismo ficavam por baixo das outras, pra ninguém ver). J. Cronin, Conan Doyle, Edgar Alan Poe, Balzac, que nada! O que eu queria mesmo era as revistas, metia a mão lá por baixo, e pimba! Lá estavam elas, as revistas.
 – Quanto é essa, Cazuza?
– Diacho é isso, menino, né coisa pra tu não, visse. Mas como conheço teu pai, leva 3 por duzentos!
Lá ia eu com as revistas escondidas, por entre os jornais pra ninguém ver quando chegava naquelas ruas do Tirol. Natal tinha pouca gente nas ruas nesse tempo, especialmente no Tirol, que era a área da média e alta burguesia, exclusivamente residencial, sentava numa calçada embaixo de uma mangueira e ficava folheando as revistas página por página à procura das louras mais bonitas. “Os homens preferem as louras, né?” Marcava as páginas pra tocar “uma” na primeira oportunidade.
Ainda hoje sinto saudade do Sebo de Cazuza...
In: SILVA, Abimael. Guia dos sebos de Natal e textos afins. Natal: Sebo Vermelho, 1998.

poeminhas de menos a mais

-I-
O sal do mar arde no meu corpo
O sol arde em mim
Arde o sol também no meu outro
Ardo eu
Ai de mim.

-II-
Passarinho me contou
E coqueiro também
Com tanto azul, tanto verde
Brilha o sol do meu bem.

quarta-feira, 1 de junho de 2011

Natal, cidade mulher - por João da Mata Costa


Natal, como te amo: leviana? Nem tanto. Escrota; menos. Muitos disseram
assim das suas cidades e mulheres. Natal banhada por rio e mar também
tem suas graças …. um certo charme na sua decadência.

Precisa de um grande escritor para traçar suas ruas e becos. Reavivar
sua memória esquecida. Salvador teve Jorge Amado. Alexandria teve um
Ptolomeu. A Irlanda entrou no mapa do mundo com a escritura de James
Joyce. A decadência de Natal tem o rosto da modernidade. E são dos
resíduos com que se faz a grande literatura. Outros disseram de uma
terra desolada. O que Joyce escreveu sobre a Irlanda eu poderia
transportar para Natal. Mas, eu não sou Giorgi e mesmo assim comemoro o
bloomsday. A Irlanda também é bebum e ruidosa. “Terra de uma raça
esquecida por Deus e oprimida pelos padres … a raça mais atrasada da
Europa”. Eu também poderia dizer isso de Natal, mas eu não sou Joyce.
Prefiro andar por suas vielas e bares. Frequentar Zé Reeira e a
garçonieri de Abimael. Tomar cerveja em Maria Boa. Entrar no cemitério
do Alecrim e rezar um cantochão na igreja do Galo. Olhar o Potengi e
namorar na pedra do Rosário. Tudo que é proibido é bom. Só com
compaixão, humor e lirismo vamos conseguir sangrar os mares desse
Potengi amado numa das esquinas do mundo onde meu amigo Tácito “foi
feliz e se deu bem”. Parafraseando Stephen Dedalus no Retrato do Artista
quando Jovem, de James Joyce, referindo-se á Irlanda, eu diria de Natal
( eu que já sou meã ): “ Natal é uma porca velha que devora suas crias”.
Elas são tudo isso e mais alguma coisa e nós, mais safados ainda, a amamos.