terça-feira, 27 de dezembro de 2011

O ÚLTIMO CONTINHO ORDINÁRIO DE 2011

Enquanto O Livro de Contos de Alice N. não se materializa (lembramo-nos, neste momento, de Hemingway, para quem um livro sobre o qual falava era um livro não escrito), publicamos aqui mais um continho ordinário, o último de 2011. E para nossos poucos e descuidados leitores, um feliz ano de 2012. Para todos nós!


O RÁDIO

 

Nada na mente. Nem na geladeira. Quis fumar um cigarro qualquer da noite passada. Não achou. Conformou-se. Na cozinha, esbarrando em baratinhas, colocou uma panela com água no fogo e sentou-se, à espera. Chá de boldo ou macarrão com alho? Eram as opções. Mas, na dúvida, ela sabia perfeitamente: não faz diferença, tudo vai passar.
Pensamento solto, vagando no abstrato do nada de coisa nenhuma, foi por acaso que o percebeu. Estava sobre a prateleira da pia. Sujo, encardido pela poeira gordurosa do esquecimento, o pequeno rádio amarelo de pilha que um dia Elisa trouxe para ela.
Numa tarde amena, tranqüila, sem dores da existência. Porque elas se amavam. Elas se queriam e o mundo tinha assim sua lógica. Naquela tarde estava de folga, era no tempo em que dançava no programa do Canal 13. Comia uma maçã com as pernas esticadas para cima, para ajudar na circulação, quando Elisa chegou, loira e perfumada como era:
– Olha o que eu te trouxe...
– Um rádio?!
Amou sinceramente aquele presentinho besta, como amava Elisa e tudo o mais que vinha dela: palavras, gestos, beijos. Amava Elisa. Naquela época, ninguém entendia. Porque Elisa era mulher e mais velha alguns anos e isso era um tabu. Não importava. Ainda que não pudessem ostentar livremente o seu amor, elas se amavam e isso, para ela, era o que importava.
No fogão, a água fervia. Venceu o macarrão, afinal.
Moravam juntas há dois anos. Elisa trabalhava no interior, só chegava na sexta-feira à noite. E ela se apresentava aos domingos pela tarde, ensaiando durante a semana as músicas coreografadas que dançaria no programa, junto com mais cinco moças. O dia que tinham para si era o sábado. Ela fritava ovos, fazia café e acordava Elisa com mimos na orelha. Depois era Elisa que lhe fazia massagem nas pernas e pés. Ligavam o rádio e ficavam à toa, folheando uma revista, falando mal da vida alheia, rindo por bobagem, até a hora do almoço. Saíam para almoçar. Às vezes emendavam um cinema. E assim iam vivendo, inocentes, felizes.
O macarrão ficou uma pasta mole e sem sabor, o alho era pouco e a vontade menor ainda. Queria mesmo era um cigarro. Ainda assim comeu, resignada. No mesmo canto, o rádio a encarava.
Elisa telefona um dia, dizendo que não vinha no fim de semana. Ia ficar lá, numa reunião de planejamento do grupo e não sei o quê. Tudo bem. Elas se amavam. Acreditava nisso. Nem lhe passou pela cabeça que Elisa tinha um homem. Um homem. Ela não foi suficiente para Elisa. E só soube muito tempo depois, após muitas reuniões de planejamento. Soube casualmente, porque viu os dois num restaurante, quando saía do ensaio. Foi até lá. Fez cena. Gritos e choro. Em vão.
Quando Elisa foi pegar suas coisas no apartamento, ela se desesperou. Jogou o rádio contra ela, acertando a parede. Que era uma vaca mentirosa. Depois se ajoelhou, implorando sua volta. Que era a glória de sua vida. Agarrou-se às suas pernas, em prantos infantis. Elisa era a frieza em pessoa. Não recuou. Deixou-a lá, rádio e vida em cacos.
Depois não pôde mais dançar. Era impossível ensaiar passos, ficar os domingos com um sorriso idiota no rosto, requebrando-se para uma platéia cretina. Logo o Canal 13 a dispensou. Foi então beber, vagabundar em inferninhos e sentir o peso da existência.
E ali estavam, ela e o rádio, na mesma solidão. Não lembrava mais como ele foi parar ali na prateleira da cozinha. Talvez nem prestasse mais, faltando pedaços e tanto tempo sem tocar. Ficou quieta, pensando, pensando... Não faz diferença, tudo vai passar. Decidiu-se, então: pegou o pequeno rádio amarelo e girou o botão.
Clic.
O mesmo chiado. Um arrepio correu pelo corpo inteiro. Elisa estava ali, rindo, com seus cabelos loiros, pedindo mimos na orelha. Tentou sintonizar alguma freqüência. Aos poucos, distinguiu uma canção, distante, ligeira. Como tudo mais.
No canto, as baratinhas espiavam.

quarta-feira, 21 de dezembro de 2011

OS CHATOS E AS CHATAS DE 2011

Lembrando que a chatice também pode ser considerada uma arte, eis os vencedores da chatice de 2011 da cidade do Natal. Atendendo a pedidos e, certamente, contemplando opiniões diversas...

O chato ciente de sua chatice: Jóis Alberto
O chato das rimas forçadas: Zé Ferreira
O chato presidente: Lula Augusto
O chato ninguém me ama ninguém me quer: Volonté
A chata performática: Civone
O chato das camisas engraçadas: Raul Varela
O chato chorão: Assis Marinho
O chato albino: Alexandre Gurgel
A chata comentarista: Alice N.
O chato dono da rua: Camilo Lemos
O chato lambe-lambe da cultura popular: Lenilton Lima
O chato divorciado: Fábio Eduardo
A chata botequeira: Nazaré
O chato que pinta os cabelos: Paula Neto
O chato locutor de partidas de sinuca: Fernandinho
O chato giz de cera: Marcelo Fernandes
O chato imortal: Diógenes da Cunha Lima
A chata prefeita evangélica: Micarla
O chato jovem intelectual: Alex de Souza
O chato velho intelectual: João da Mata
Os chatos listadores de chatos: Rafael Duarte e Cellina Muniz

terça-feira, 20 de dezembro de 2011

RIMAS CHINFRAS N. 2

Concha nenhuma me conta segredo,
Búzio nenhum me diz do mar.
A estrada?
Exílio, degredo.
Destino pra não se chegar.

segunda-feira, 19 de dezembro de 2011

RIMAS CHINFRAS

Minha saudade, impossível.
Como sol: cega.
E na pele, o suor
Escorre o indizível.

Um verso pra não dizer
O mundo em que vou me espalhar.
Mergulho, eu também, no mar
E afundo até não mais ser.

segunda-feira, 12 de dezembro de 2011

HAIKAI PARA DEZEMBRO N. 3

Sou toda ventre
Prenhe
Para nascer de mim.

CRONIQUETA METIDA A BESTA

LEMBRANÇA DE UM PASSEIO
Levou a filha de cinco anos consigo. Lá, sol, mar e aquela explosão que é uma praia urbana num dia de domingo.
- Seu clitóris é imenso – ele diria logo depois para a dona do bar, os dois atracados no minúsculo e fétido banheiro como são muitos deles nas praias e nos dias de domingo de sol. Enquanto isso, a menina chupava o dindim de morango, sozinha em meio aos bêbados, à espera do pai que saíra para mijar, três caipirinhas e duas cantadas ordinárias depois.
Chegaram, escolheram uma das mesas e sentaram. Uma mulher com grandes peitos moles veio atendê-los. O pai olhou de esguelha para a menina, tentando adivinhar se ela desconfiava de algo.
(É, filha, a estranheza sempre espreita, mais cedo ou mais tarde...)
- Ó tua caipirinha, tá uma diliça – anunciou a mulher, com voz a se pretender sensual.
Passou o ambulante, a menina só olhou para o pai e ele adivinhou, chamando o homem.
- Tem de quê?
Ela preferia o de uva, acabou escolhendo o de morango. Achava o vermelho mais bonito, parecia mais saboroso, mas um dia ela perceberia que todas as cores têm seu valor.
E por que é que todas as histórias têm que ter um elemento de sacanagem? pergunta a menina anos depois, olhando um pai sentado na calçada da esquina com um bebê no colo, enquanto aguarda o ônibus que a leve para uma das praias da cidade que ferve em mais um domingo de sol.

domingo, 4 de dezembro de 2011

UM POEMA DE JOTA MOMBAÇA

INEXÁGONO

Nada me reside
Há em mim falta de tudo
Mas sou habitado pelo trânsito.

Geometria incalculável me desenho:
Inexágono,
Estilhaço sanguinolento caindo como chuva.

quinta-feira, 1 de dezembro de 2011

PERSONAS POTIGUARES: FIA


FIA

Era estrangulado o sorriso dela. Chegava-se e esgarçava a boca naquele jeito fia de ser, em busca de um trocado ou de atenção. Em uns, repúdio, em outros, graça. Outros também: indiferença.
Pulseiras de cigana. Cicatrizes pelo corpo.
- Fia, no que tu te fias?
Perguntavam os poetas do Beco, em noites alucinadas.
E enquanto seguiam, versos trôpegos noite adentro, o olhar perdido de Fia acompanhava a sombra dos gatos em noites perdidas da tal futurista cidade.

HAIKAI DOIS PARA DEZEMBRO

Dezembro, sim
Eu lembro:
tempo de esquecer.

UM HAIKAI PARA DEZEMBRO

Finda o ano
Outra vez
(Des)engano.

domingo, 27 de novembro de 2011

UMA CRÔNICA

SOB OS CAJUEIROS

Do escritório empoeirado, nos fundos da casa, podia ouvir os gritinhos e risos das meninas brincando no quarto. Tirou os óculos e observou por um instante o quintal lá fora, pela janela escancarada para o sol da manhã. A vida podia ser tão fácil, sim... Tudo simples e espontâneo como o sorriso de uma criança. Tudo forte e sincero como o sol de uma manhã de dezembro.
O perfume dos cajus entrou com um vento ligeiro e adocicado, abalando as narinas e os papeis sobre a mesa. Olhou a desordem dos livros e cadernos e quis morrer. Lá fora, as árvores agitavam-se com suas folhagens muito levemente, como se conversassem entre si:

- Você viu que nasceram mais três pardais?
- Você percebeu o orvalho dessa noite, como veio mais pesado?

- Você notou que ele nunca mais deitou-se na rede?

De fato, a rede, armada entre os cajueiros, jazia inerte, abandonada, vez ou outra agitada por um vento mais forte. Quantas tardes de sossego, quantas leituras delirantes, quantas quimeras sussurrada em imagens confusas e perdidas para sempre?
Um dos rostinhos surgiu à porta – a declaração de fome.

- Já já é hora do almoço, tenha paciência.
- Mas eu quero torrada com goiabada – foi a sentença.

Foram à cozinha. Uma frase enquanto passava a geléia com a fria faca: a chuva do caju não lava minha alma.
- Mais uma torrada, pai.

- Não lava, não lava...
De novo no escritório, tentou folhear o livro de Trevisan, sem ânimo. Pensou em ler os e-mails mas também não se empolgou. Às onze chegou a velha tia, trazendo as marmitas. De volta à cozinha, enquanto as meninas faziam festa em volta dos pratos, ela tentava dizer algo útil:

- Você precisa sair mais, meu filho.
- ...

- E seus amigos, onde estão?
- ...

- Você precisa é arranjar outra mulher, esquecer de uma vez o passado...

O passado. A chuva do caju não leva meu passado. A chuva do caju não lava minha alma.

E comiam o feijão, enquanto lá fora a rede sob os cajueiros sonhava com beijos de outrora.

terça-feira, 15 de novembro de 2011

O HUMOR NA IMPRENSA NATALENSE: O JORNAL "O PARAFUSO"(1916-1917)

Outro dia, fui ao Instituto Histórico e Geográfico do Rio Grande do Norte em busca de uma revista em que supostamente o poeta Jorge Fernandes teria escrito alguns textos de humor. Não achei a dita cuja (Revista Araruna), porém encontrei, meio por acaso, mas graças ao guia de Manoel Rodrigues Melo e à solicitude de Lúcia, uma preciosidade: o jornal O Parafuso, um periódico humorístico semanal que circulou em Natal de 1916 a 1917.
Já na apresentação de si a verve satírica do jornal se anuncia: tendo como diretor “um jovem” e como colaboradores “quem tiver dinheiro e coragem”,  O Parafuso apresentava seções em que se destacava o riso de zombaria, na classificação de Vladimir Propp, isto é, o cômico alcançado a partir do rebaixamento do outro.
Fico imaginando o sucesso de público do jornalzinho. Mesmo sendo uma cidade ainda pacata, vivenciando as primeiras transformações geográficas e sociais que a transformariam numa Nova Natal[1], pode-se dizer que a capital potiguar já apresentava certa tradição de imprensa jornalística, com a edição e circulação de impressos como a revista mensal A Tribuna (1903-1904), dirigida por Pinto de Abreu, ou o jornal O Potyguar (1904-1908), de Gothardo Neto (cf. FERNANDES, 1998). Mas nenhum outro destacou-se como periódico de humor, editado semanalmente e alcançando o número de, pelo menos, 55 edições.
Certamente, O Parafuso era um dos principais hábitos de leitura e divertimento da monótona Natal de então: Dr. Seboso e Dr. Belzebuth se responsabilizavam por seções intituladas Dizem..., Damno-me... e De parafuso em punho..., colunas de fofocas e comentários maldosos a respeito de pessoas e episódios da vida local; Um cego aparecia como responsável pela seção Queria ver..., espécie de coluna de pequenos protestos e reivindicações; e outras alcunhas, como Zé Binga, Língua de Mel, Zé Mulambo, K Tizpero entre outros manifestam uma autoria afiada pelo humor. Vejamos alguns exemplos:
Na seção Dizem... encontramos pérolas como...
- que na rua Borborena appareceu um lobishome ás 3 horas da madrugada;
- que o dito já foi descoberto por um sapateiro que tirou-lhe o couro para fazer um par de sapatos para dar a um rapaz que tem um chamego no beco...  (16/04/1916).
- que na rua Amaro Barretto tem uma mulher que se não tomar um chá de talo de bananeira enlouquece (30/01/1916).
Outra seção, que também faz valer o rebaixamento do outro, é a Damno-me..., em que é possível observar a ridicularização de pessoas da cidade, como em...
- com Nezinho por querer ser poeta; vae estudar, jumento...
- com a falta de juíso que tem certa viúva da cidade-alta... (06/02/1916).
Esses poucos exemplos revelam o aspecto disciplinador que estaria associado a esse riso de zombaria. Já que essa manifestação de comicidade estaria apoiada na ridicularização de “defeitos”, fossem verdadeiros ou supostos (PROPP, 1992), O Parafuso, assim, parece pretender regular atitudes e comportamentos, censurando e combatendo tudo o que não estivesse de acordo com os códigos de civilidade da modernidade que então chegava à província[2].
A seção De parafuso em punho... é outra coluna d’O Parafuso que manifesta esse aspecto. Seguindo o título, surgem vários comentários sobre pessoas e/ou situações contra os quais o periódico se coloca. Dentre eles, destaque para trechos como...
- contra uma moça que foi a um enterro e trouxe um gerimú do cemitério (05/03/1916).
- contra a viúva da travessa P. Barros, que não tem verniz;
-contra a mesma que não respeita nem a irmã. Cuidado não seja tão alegre, sinhá cara de saguim (10/12/1916).

O mais curioso – e isso sim me fez rir a valer – é o comentário que aparece na seção Dizem...: “que em Natal há línguas ferinas demais”...
Imagino se os meninos d’O Parafuso visitassem o Beco da Lama nos dias de hoje...
Referências Bibliográficas
ARRAIS, Raimundo. Estudo introdutório. In: ARRAIS, Raimundo. Crônicas de origem: a cidade de Natal nas crônicas cascudianas dos anos 20. 2ª. Ed. Natal: EDUFRN, 2011.
AZEVEDO, Sânzio. A Padaria Espiritual. Fortaleza: Academia Cearense de Letras, 1976.
FERNANDES, Luís. A imprensa periódica no Rio Grande do Norte: de 1832 a 1908. 2ª. Ed. Natal: Fundação José Augusto/Sebo Vermelho, 1998.
PROPP, Vladimir. Comicidade e riso. Vários tradutores. São Paulo: Ática, 1992.
SILVA, Marco Aurélio Ferreira. Uma Fortaleza de risos e molecagem. In: SOUZA, Simone de; NEVES, Frederico de Castro (orgs.) Comportamento. Fortaleza: Edições Demócrito Rocha, 2002.


[1] Cf. Arrais (2011), no seu estudo introdutório sobre a cidade à época das primeiras crônicas de Câmara Cascudo. Segundo Arrais, algumas intervenções urbanas já no começo do século apontavam para a modernização da cidade, como a instalação de bondes em 1908 e a iluminação pública em 1911, mas a grande diferença se fez com o Plano Palumbo, na década de 1920, que reorganizou a malha urbana e criou jardins, praças e passeios na cidade.
[2] Também no Ceará é possível ver o mesmo riso disciplinador. Em seu estudo sobre a imprensa cearense do final do século XIX, Marco Aurélio Ferreira da Silva mostra como alguns pasquins, como O Moleque, procuravam, através do riso, “corrigir, regular e modelar hábitos e costumes” (cf. SILVA, 2002).

domingo, 13 de novembro de 2011

A PRENSA E AS FONTES: DOM QUIXOTE NA OFICINA DE IMPRESSÃO



Este é o título de um dos capítulos que compõem o livro “Inscrever & Apagar”, de Roger Chartier, o renomado historiador do livro e da leitura. O livro trata de questões fundamentais para se pensar o livro como um objeto histórico e cultural e, especificamente nesse capítulo, Chartier toma o caso de Dom Quixote para rever como se organizavam as funções, técnicas e etapas imprescindíveis para a publicação de um livro no século XVII.
Segundo Chartier, a presença de uma oficina de impressão na narrativa de Cervantes (entre os capítulos LXI e LXVI) não é casual: “ela introduz, no próprio livro, o lugar e as operações que tornam sua publicação possível” (fato já identificado por Borges, aliás).
E prossegue o historiador:
Cervantes inicia seu leitor na divisão e multiplicidade das tarefas necessárias para que um texto venha a ser um livro: a composição das páginas pelos compositores (componer), a revisão das primeiras folhas impressas a título de provas (corregir), a retificação, pelos compositores, dos erros identificados nas páginas corrigidas (enmendar) e, finalmente, a impressão dos moldes, ou seja, do conjunto de páginas destinadas a ser impressas de modo idêntico, do mesmo lado de uma folha de impressão, pelos operários encarregados da prensa (tirar). (CHARTIER, 2007, p. 87-88).
A descrição de Cervantes coincide com o que regulavam diversos manuais de impressão e tipografia da época, todos destacando o papel do revisor. Segundo esses manuais apontados por Chartier, cabia ao revisor tanto identificar erros dos compositores, seguindo as provas impressas do texto a partir da leitura em voz alta da cópia original, como também atuar como censor, buscando (e recusando) algo que contrariasse a Inquisição, “a fé, o rei e a coisa pública”. O revisor, assim, era aquele que dava forma final ao livro, sendo preciso tanto compreender a caligrafia original como também perceber as intencionalidades do autor. Isso sem falar nos conhecimentos necessários para exercer seu ofício: gramática, teologia, direito e língua latina, além de alguns rudimentos sobre as técnicas de impressão.
Desse modo, o leitor do século XVII sequer poderia imaginar (como talvez ainda não imagine, no século XXI) que, se o corpo do livro é o resultado do trabalho de editores e impressores, sua alma não é confeccionada apenas pelo autor, mas recebe sua forma também daqueles que trabalham aspectos aparentemente banais, mas essenciais para a leitura de uma obra: pontuação, ortografia, paginação, estilo e textualidade, elementos que passam pelas mãos (criteriosas ou não) dos revisores de ontem e de hoje.
CHARTIER, Roger. Inscrever & Apagar. Tradução de Luzmara Curcino Ferreira. São Paulo: Editora UNESP, 2007.


quarta-feira, 9 de novembro de 2011

MAIS UM CONTINHO ORDINÁRIO

PÂNICO


Ano-Novo, velhas opiniões formadas sobre tudo.
Para tentar escapar da angústia que aos poucos chegava, foi ao supermercado.
Queria crer que seria fácil. Olhava a redor, as pessoas como floresta, eletrodomésticos em vez de bichos, prateleiras e cartazes em vez de colinas e vales, olhava tudo sem nada ver. Queria crer que era fácil e simples. A resposta ali na frente, acenando com sorriso destrambelhado. Eis me aqui, eis-me aqui!!! Muito fácil, sim. Uma questão de concentração, de foco. Energia canalizada e tudo resolvido!
Tornou a erguer a cabeça. A fila caminhava, sem maiores dramas e delongas. O painel luminoso à frente indicava: mais três pessoas e chegava a sua vez.
Enquanto isso, a música do piano elétrico continuava, com os hits americanalhados e contumazes. Crianças, subitamente amigas, correndo ao redor de uma grande árvore de natal, o homem anunciando ao microfone as ofertas de última hora. Mal sabia ele que é sempre a última hora.
Enquanto amigos de academia se organizavam em torno dos sushis no balcão da lanchonete e mulheres donas de família comparavam os preços e embalagens das marcas e caixas de sabão em pó, ela lia pela milésima vez o rótulo na garrafa que tinha em mãos, refúgio para o surto que se anunciava.
Um Merlot. Não importa isso aqui. Não importa a sua taquicardia, os homens do campo continuarão plantando e colhendo nos vinhedos aquelas melhores cepas. O consolo, a vida continuando, o mundo girando além dela, pó que retorna ao pó.
Aliás, onde encontrar pó naquela hora, naquela cidade?
Sem a menor condição de possibilidade. E, pensando bem, nem queria tanto assim, pensou, fungando abstraidamente.
O aviso do painel mandou mais um para o abate. A fila do caixa andou e parou novamente. Segurou mais firme a garrafa com o Merlot – portal de fuga – e respirou fundo, dando intervalos de segundos a cada expiração, conforme aprendeu séculos antes. Sim, está tudo na nossa mente. E pode ser só uma questão de técnica.
Ah, a técnica...
Talento, cadê você?
É a Técnica, que não me dá sossego...
Manda essa vadia embora. Explica quem é que manda.
Não. De repente ela vai mesmo. E o resultado pode ser o mesmo ou pior – ostracismo, falta de atitude...
Atitude, cadê você?
Trancada no quarto enquanto o mundo desaba lá fora. E é uma questão de tempo até derrubarem essa porta.
O que resta?
A esperança. Pandora não te falou?
Por isso as festas são necessárias...
Pois é, as opiniões...
O suor frio, frio na alma.
Para uns, uma questão de guerra santa: uma bomba bem armada, uma ocasião propícia e um segundo para a revelação do Paraíso. Para outros, uma questão de meditação: respire fundo, sinta as falanges do dedinho do pé e descubra. Conheça-se.
Quando sua vez na fila do caixa chegou, a respiração voltou ao ritmo normal. Depois de todo aquele terror, só conseguiu desejar que aquele terroir não fosse também tão terrível...

quarta-feira, 2 de novembro de 2011

EM MINAS, COM BANDEIRA

POEMETO ERÓTICO

TEU CORPO CLARO E PERFEITO,
- TEU CORPO DE MARAVILHA,
QUERO POSSUÍ-LO NO LEITO
ESTREITO DA REDONDILHA...

TEU CORPO É TUDO O QUE CHEIRA...
ROSA... FLOR DE LARANJEIRA...

TEU CORPO, BRANCO E MACIO,
É COMO UM VÉU DE NOIVADO...

TEU CORPO É POMO DOIRADO...

ROSAL QUEIMADO DE ESTIO,
DESFALECIDO EM PERFUME...

TEU CORPO É A BRASA DO LUME...

TEU CORPO É CHAMA E FLAMEJA
COMO À TARDE OS HORIZONTES...

É PURO COMO NAS FONTES
A ÁGUA CLARA QUE SERPEJA,
QUE EM CANTIGAS SE DERRAMA...
VOLÚPIA DE ÁGUA E DA CHAMA...

A TODO O MOMENTO O VEJO...
TEU CORPO... A ÚNICA ILHA
NO OCEANO DO MEU DESEJO...

TEU CORPO É TUDO O QUE BRILHA,
TEU CORPO É TUDO O QUE CHEIRA...
ROSA, FLOR DE LARANJEIRA...

Manoel Bandeira

sábado, 22 de outubro de 2011

dois poemetos em que me meto

O SEGREDO DO TEMPO

No infinito
Minhas palavras
Atrasadas
Vào vibrar
Em vão.
O agora-instante
No futuro bruma
Irá ressoar
Para cada sim
Também um não.
E para valer, então,
A imprecisão do presente momento
A certeza do desimportante
O segredo do tempo.

NA COZINHA
O peixe serra pisca o olho pra mim
como quem diz, brejeiro:
Depois deste chardonay
Você será
Tudo o que quiser.
Sim, eu creio, amigo.
A sua verdade
Vem do mar
E do calor desta chama.
Mas sou eu, peixe amigo
Que te jogo nesta panela
E te dou sabor.
Tudo isso
só para dizer
ai, o mar,
ai, o amor...

domingo, 16 de outubro de 2011

MAIS UM POEMINHA ORDINÁRIO ( da Série "eloCUbrações dominguEIras"

NA CASA GRANDE

O que me dizem essas paredes velhas?
Que palavras soam suas pedras?
Quantos anos para eu saber?
Na Casa-Grande
Da vila da Lagoa
Não vi fantasma do Tempo
Eu mesma sou
Escrava de mim.

quarta-feira, 12 de outubro de 2011

VIVA FERNANDO SABINO!!!






Se ainda fosse vivo, Fernando Sabino estaria completando hoje, dia 12 de outubro, exatos 88 anos. E hoje eu me lembro dele.
Claro, de sua escrita, poderosa, a povoar de delírios as leituras dos meus 14 anos. Eu lia Fernando Sabino a todo momento, em qualquer lugar: no ônibus, na solidão do quarto, nas aulas de física do colégio... E, na minha imaginação, eu achava que poderia esbarrar com ele em alguma esquina da cidade, no seu jeito distraído e bem humorado, vindo do Rio para Fortaleza para me consolar naqueles tempos difíceis.
Cheguei a escrever para ele. Quando sua carta em resposta à minha chegou lá em casa, a alegria foi imensa e inesquecível. Mandou-me de presente, entre outros, uma edição especial de "O menino no espelho", livro que li aos dez anos, na biblioteca da cidade de Barreiras, na Bahia, quando fiz uma viagem com a família e que ocupa, na minha lista de favoritos, lugar especial.
A seguir, trecho de uma ótima crônica sua, do livro "A falta que ela me faz":

O ESTRANHO OFÍCIO DE ESCREVER
Éramos três condenados à crônica diária: Rubem no "Diário de Notícias", Paulo no "Diário Carioca"e eu no "O Jornal". Não raro um caso ou uma idéia, surgidos na mesa de bar, servia de tema para mais de um de nós. Às vezes para os três. Quando caiu um edifício no bairro Peixoto, por exemplo, três crônicas foram por coincidência publicadas no dia seguinte, intituladas respectivamente: "Mas não cai?", "Vai cair"e "Caiu".
Até que um dia, numa ora de aperto, Rubem perdeu a cerimônia:
- Será que você teria aí uma crônica pequenininha para me emprestar?
Procurei nos meus guardados e encontrei uma que talvez servisse: sobre um menino que me pediu um cruzeiro para tomar uma sopa, foi seguido por mim até uma miserável casa de pasto na Lapa: a sopa existia mesmo, e por aquele preço. Chamava-se "O preço da sopa". Rubem deu uma melhorada na história,trocou "casa de pasto" por "restaurante", elevou o preço para cinco cruzeiros, pôs o título mais simples de "A sopa".
Tempos mais tarde chegou a minha vez - nada como se valer de um amigo nas horas difíceis:
- Uma crônica usada, de que você não precisa mais, qualquer uma serve.
 - Vou ver o que posso fazer - prometeu ele.
Acabou me dando de volta a da sopa.
- Logo esta? - protestei.
- As outras estão muito gastas.
Sou pobre mas não sou soberbo. Ajeitei a crônica como pude, toquei-lhe uns remendos, atualizei o preço para dez cruzeiros e liquidei de uma vez com ela, sob o título: "Esta sopa vai acabar".

quarta-feira, 28 de setembro de 2011

MAIS UM POEMINHA ORDINÁRIO

ODE AO BAR E AO LUAR



Ao bar,
Venho sempre.
Venho assim:
Lua cheia,
Venho plena,
Eu cheia de mim.
Lua míngua
E eu, cínica,
Rio de mim.
Lua nova
Eu me escondo
Eu escombro
De mim.
Lua cresce
E eu, criança
Que tece
Esperança de mim.
Ao bar,
Venho sempre.
Sozinha, com a lua
Dia não, dia sim.

segunda-feira, 19 de setembro de 2011

MAIS UM CONTINHO ORDINÁRIO

NOS DILEMAS DOMINGUEIROS


Da varanda de seu apartamento de um oitavo andar no bairro do Tirol, observava lá embaixo a vida no movimento de um domingo de sol no clube vizinho.
Quantas cores e sons não aconteciam naquele momento? E ninguém lá, entre velhos poetas, maridos manicacas, mulheres de celulite e crianças estragadas, poderia imaginar sua existência.
E, no entanto, ele existia.
Estava ali, no dilema de escolher entre ler pela décima terceira vez o “Antilogia Poética Potiguar” ou pegar em cima do guarda-roupa a pistola 45 e dar um tiro certeiro no peito, tal como fez Osvaldo Lamartine. Na dúvida, foi a te a varanda, (quem sabe, pela última vez?) para ver o noivo da cidade.
Quanto sol, quanta luz! Como não aceitar a vida, do jeito que ela é?
Perdia-se, assim, nessas divagações todas suas quando, lá embaixo no clube, percebeu a cena.
O verde do gramado do parque infantil fez destacar os dois, isolados perto do muro, homem e menino, um de frente para o outro. A princípio, pensou tratar-se de um pai em considerações com o filho. Algo de constrangido na postura da criança parecia indicar para ele que o menino levava um pito, decerto por algumas dessas chateações que sempre causam esses pequenos cães.
Mas de repente viu o homem olhar para os lados, ajoelhar-se e puxar o menino para junto de si. Com uma mão prendia o pequeno corpo pelas costas e com a outra mão nervosa afagava as partes íntimas da criança.
Tudo não durou mais que alguns segundos.  Logo o homem largou o menino e cada um seguiu, sem correr, para uma direção, indo em lados opostos.
Ficou ainda um instante na varanda, aguardando não se sabe o que, sentindo na pele o calor do sol de domingo. Olhou mais uma vez o céu e entrou, fechando atrás de si a porta de vidro. Atravessou a ampla sala, dirigindo-se à cozinha. Decidiu fazer um café bem forte.
Nada melhor para acompanhar a leitura de poemas da geração alternativa norte-rio-grandense.

domingo, 18 de setembro de 2011

quarta-feira, 14 de setembro de 2011

POETAS POTIGUARES: JORGE FERNANDES


PRECES À LUA

Oh! lua branca de Antônio Nobre,
Boiando triste num céu de estio...
O teu clarão que os ermos cobre
Faz tudo morto, faz tudo frio!

"Monja do espaço" de Cruz e Souza,
Vagando erma pela amplidão...
Velas contrita alguma lousa
De quem repousa na solidão?

Lua dos loucos, rugindo fúrias!
Lua dos ébrios, nas serenatas!
Lembras mistérios, tristes luxúrias
Dos feiticeiros nas grandes matas!

Lua dos loucos, dos delirantes,
Que gritam a esmo seus infortúnios...
Meio escondida nos seus minguantes
Doce redoma nos plenilúnios!

Leva-me um dia transpondo céus
Pra onde foram todos os meus!

(In: Livro de Poemas)

segunda-feira, 12 de setembro de 2011

MAIS UM POEMINHA ORDINÁRIO

(Para ArtLima)

VERSOS NOS CHAMAM,
AQUI ESTAMOS, PALAVRAS!
EM CORPO, ALMA
EM CHAMA.

COPOS NOS CLAMAM,
AQUI ESTAMOS, RESSACAS!
EM MIJO E SEDE,
INSANOS.

sexta-feira, 9 de setembro de 2011

MAIS UM CONTINHO ORDINÁRIO

MEU ENCONTRO COM DOSTOIÉVSKI

ENTÃO, subitamente, vi-me ali: entre mãos leprosas e risos engasgados, entre cheiro de bosta e aroma de leite quente, entre carícias de veludo e unhas de gatos com rancor, ali estava. E em dezessete dias morreria. Morria, sim, sabia. A cigana de olhos vazados e dentes quebrados me disse, enquanto o anão puxava a ponta de meu vestido e suplicava por cochichar segredos indizíveis. Dezessete dias, minha santa, anunciou.

ENTÃO, já longe de toda aquela algazarra, distante de todo aquele burburinho, só havia o mar. O mar e a noite. O mar na noite. A noite do mar.
– É assim... – ele disse. Fez pausa e prosseguiu:
– Viver, às vezes, é tão bom que dá vontade de morrer.
E só olhava para os próprios passos na areia da praia, lentos, precisos. Seu semblante era sereno. Como se toda a Nona Sinfonia de Beethoven fosse inútil. Como se quarenta graus negativos fossem bobagem. Nada se comparava à solidão humana. Por essa aprendizagem, quis beijar sua cabeça calva, cheirar sua barba, tentar uma carícia impossível e sentir todo ele, ele... Tão polifônico, ele... Fiquei quieta, percebendo o mofo de sua casaca, o pó do tempo sobre seus bigodes... Fiquei quieta, e só o mar falou, as ondas na praia, nenhuma certeza além daquela – nada de coisa nenhuma pode durar.
ENTÃO, voltaram os dedos leprosos, as latrinas e leiteiras, o anão safado buscando em outras saias outras possibilidades, o riso perpétuo a fazer rostos se contorcerem de tanto chorar. Um gato se lambendo, candidamente. Almofadas cor de vinho para um sono eterno. Dezessete dias, minha santa, soprou a cigana, cruzando novamente meu caminho, com um sorrisinho quase meigo. Mas isso eu já sabia. E soube também, na areia da praia de uma noite enfeitiçada e sem lua no céu: nada pode durar.
DEPOIS, trouxeram mais comprimidos e compressas. Mas a febre não baixou.

domingo, 28 de agosto de 2011

PERSONAS POTIGUARES: MOYSÉS E MOACY


A POESIA FESCENINA DE MOYSÉS SESYOM

O poeta potiguar Moysés Sesyom nasceu em Caicó, em 1883, e faleceu em Assu 9cidade que o acolheu a partir dos 21/22 anos) em 1932. Um dos maiores poetas populares do Estado (entre seus admiradores, Câmara Cascudo, Nei Leandro de Castro, Celso Jupiassu, Celso da Silveira, Danilo Bessa, Diógenes da Cunha Lima, Clotilde Tavares, Sebastião Nunes, Glauco Mattoso e Chico Doido de Caicó), Sesyom marcou época. O “Balaio”, que já o divulgou em outras ocasiões, volta a publicar algumas de suas glosas:

MOTE:
Se Celina me matar
Ninguém tenha dó de mim
GLOSA
Não posso mais suportar
É grande a minha paixão,
Perdôo de antemão
Se Celina me matar.
Se dela me apaixonar
Terei um prazer sem fim.
Se alguém me vir assim,
Chupando o beicinho dela,
Se eu morrer fudendo nela
Ninguém tenha dó de mim.

IN: CIRNE, Moacy. Almanaque do Balaio. 20 anos de um zinepanfleto-em-progresso. Natal: Sebo Vermelho, 2006. P. 55-56.

PERSONAS POTIGUARES: PAULINHO BOLA NA TRAVE

PAULINHO BOLA NA TRAVE
Beirando os setenta e nove anos, o Paulinho. E nem por isso tomando jeito. Paulinho Bola na Trave, nomeou o sebista, enquanto riam os colegas, sádicos, diante das presepadas de Paulinho. Alguns se apiedavam. Será carência? Será solidão? Senilidade ou serenojovialidade? Sem-vergonhice mesmo.
– Será?
Quando chegava, muito distinto. Houvesse mulher presente na roda, começava logo com os galanteios, se utilizando de umas três ou quatro rimas de perna quebrada. E, ao findar a primeira dose da indefectível cana Pitu, prometia mundos e fundos caso a dama o aceitasse como digníssimo senhor seu marido.
– Aceito tudo – babava.
A partir da terceira dose, fechava-se mais e mais nos seus delírios, enquanto no bar ninguém dava por sua existência. Às vezes dava sinal de vida, arregalando os olhos e soltando súbitas exclamações:
– Não parta, Auta!
– Ei, Wanderley!
Paulinho, Paulinho... Aposentado, morava sozinho numa casa de dois andares. Nem papagaio nem jarro de Comigo-ninguém-pode para o acompanhar. Como seriam os domingos de Paulinho? Que pesadelos teria em certas madrugadas? Quem cozinhava para ele e engomava suas calças, sempre impecáveis? Quais seus livros prediletos?
Pois Paulinho se revoltou com o desprezo que na mesa lhe davam. Primeiro jogou o copo no chão espatifando-o em mil cacos.
– Paulinho, corta essa – dizia cada um, logo retomando o fio da conversa animada. Depois levantou-se, impondo silêncio.
– Oh!
Sacou do pau e mijou sobre os pratos vazios e copos descuidados.
– Porra, Paulinho!
Foram saindo, devagar, para outras mesas e companhias. Paulinho ficou só. Enquanto a garçonete limpava a sujeira, maldizia Paulinho:
 – Quero ver rasgar dinheiro! Vai, rasga!
A resposta, um sorriso largo e alucinado.
A tarde chegava e ninguém mais se lembrava de Paulinho. Até porque aquilo não era novidade: mijou também em assembléia de sindicato. Além disso, Paulinho já jogou dinheiro na Rio Branco, já amanheceu nu na calçada, já nadou sem roupa em piscina de clube... Paulinho Bola-na-Trave. Quando caía a noite, reparavam que Paulinho sumira, enfim. Foi-se embora, depois de gritar uma centena de vezes para as mulheres que passavam pela rua em frente:
– Quero teu cu!
E a promessa de sempre:
– Aceito tudo!